quinta-feira, outubro 12, 2006

Paradoxo Chico Xavier

Pois que por preocupação e bondade alheia, o então recém desencarnado, Chico resolvera palavrear um tanto das condições semânticas da psicografia e da mediunidade, visando o polimento da doutrina espírita e a boa transmissão dos sinais interconectados à rede mediúnica dos mundos possíveis. Posto que haveriam tantos destes quanto, pelo menos, o correspondente aos espalhados níveis de evolução, maiores, mais perfeitos, puros, impuros, bons, ruins, imperfeitos, iguais, principalmente iguais, embora não-completamente idênticos, indefinidamente em direção infinita aos cantões mais remotos cobertos pelo sistema único de psico-comunição. Assim, de modo que na falta de um acesso direto às mais elevadas e incomunicáveis instâncias, fosse necessário fazer uma discagem indireta, superestimando nossos provedores mais imediatos. Daí, então que o médium, excelentíssimo Sr. Carlos A. Baccelli, em reunião pública do dia 22 de junho de 2003, na sede do Centro Espírita Beneficente "Bezerra de Menezes", na cidade de Pedro Leopoldo, Minas Gerais, Brasil, recebeu a então entidade mais excelentíssima ainda, o muito simpático senhor Francisco Cândido Xavier, do qual eximamo- nos qualquer apresentação.
Fato que este bondoso e mais perseverante altruísta, não contente em despojar-se da autoria de um incontável número de supervendidas e bajuladas obras, do mais bucólico romantismo ao mais categórico delineamento reflexivo, mas ainda também, não contente em igualmente falsificar a vastidão incomensurável de sua erudição e conhecimento de culturas e línguas das mais excêntricas às mais impronunciáveis, e tudo isto endereçando, por sua devoção e esforço maior, à mediunidade e à faculdade da psicografia, este grande espírito resolvera agora, então, pacificar os conflitos de autoridade entre escolas divergentes do espiritismo. Dado que o seguidores franceses da escola de Allan Kardec passaram a enciumar o crescimento destas práticas aqui em nosso país, e sobretudo a elevação moral e ideológica deste grande mentor, então uma querela muito infantil andava a motivar os ânimos mais mesquinhos dos homens corrompidos, logo fazia-se necessário a intervenção de uma palavra maior. E assim discorre o velhinho morto que;
(...)Aqui compareço, nesta manhã, na mesma condição daqueles companheiros que me antecederam na palavra e sinceramente, não me reconheço sob regime de qualquer privilégio em relação a eles ou a vocês, que continuam e devem continuar esforçando para prosseguir com o ideal que abraçamos, em nossa Doutrina(...) A obra dos Amigos Espirituais, por meu intermédio, em verdade, não pertencem a eles mesmos e muito menos a mim, que prossigo deste Outro Lado da Vida me considerando na condição de um cisco! A tarefa que encetamos na Doutrina pertence ao Senhor e, para executá-la com a devida fidelidade, carecemos de colocar de lado o personalismo e não tomarmos o caminho da polêmica inútil(...) Perdoem-me, se, escrevendo a vocês neste instante, eu não consigo deixar de ser o Chico que sempre fui...
No entanto, como por ele mesmo antes colocado, que para acessar a doutrina do Senhor, abandonando nosso personalismo, devemos buscar dentro de nós mesmo, no mais íntimo do Eu. Então, que o personalismo que empobrece nossa missão deve ser abandonado na legitimação das mensagens em Deus, e no genuíno de nós mesmos, nosso eu interior. Como se já não bastasse a complexidade lógica já ela mesma inserida no referente das autorias de proposições psicográficas, agora elas ainda mais multiplicadas com o envio a Deus, como o não-eu na esfera do si mesmo, o que do ponto de vista lógico dá no mesmo que o eu,
então, que (1)se é dito por Xavier, através de mensagem psicografada pelos dons de Baccelli, que aquilo que é dito por ele mesmo (Xavier) não é em verdade dito por ele, mas por Deus ele mesmo, nesse caso, Deus como ele mesmo em sua intimidade (Xavier), dado que este é o caráter semântico da proposição psicográfica. Mas (2), que também o que é dito por Baccelli, não é dito por ele mesmo, embora já não fosse o que ele pretendia, posto que é Deus dentro dele mesmo em sua intimidade, mas (3) se ele remetesse a Xavier, que por sua vez remetia a Deus, mas (4) ao mesmo tempo remetesse ao próprio Baccelli, enquanto Xavier reconhecesse suas proposições elas mesmas como mensagens psicografadas por tal médium no interior de sua intimidade, de modo mais unificado teríamos: “É dito por Baccelli que é dito por Xavier que o que é dito por Xavier não é dito por Xavier, mas por Baccelli ele mesmo”, isto justificado por 4.
Ainda, que se o que Xavier diz é falso por que é uma contradição, primeiro por que o que é dito por ele não é dito por ele, segundo por que isto mesmo é dito por ele, então é ainda mais falso por que o que é dito por Xavier é assim mesmo citado por Baccelli, embora atribuído a ele mesmo. E na melhor das hipóteses, é dito por A que é dito por B que o que é dito por B é dito em verdade por A. E se o que B diz é uma auto-contradição, posto que diz de si mesmo que o que diz não é dito por si mesmo, e se isto mesmo é dito por A, então A é falso, por que se o que B diz é verdadeiro, então é falso, e se falso, então verdadeiro. E o que Baccelli diz parece ser não apenas falso, mas auto-referente, posto que dito por ele mesmo.
E não apenas por cansaço e respeito precavido aos mortos, mas por limitação momentânea a um impasse lógico maior que se anunciasse ao fato possível de que tudo isso me fosse concedido via mensagem mediúnica, deixo por hora a presente digressão. Mas que seja contudo ressaltado meu profundo afeto à precisão enigmática do muito simpático Chico.

sábado, abril 22, 2006


(Paranoia, 1995, Öil auf Leinwand. Walter Strolb)

Começou percebendo excentricidade no toque do telefone, não apenas triiim como de uso, mas como que engasgando uma consoante nova, meio escondida depois do r. Depois ia ficando meio abafado o ar da casa, trliiim... trliiim... Ignorou o soslaio da mocinha no caixa da farmácia, embora intrigado um tanto mais. Nada extremamente insólito. Algo entretanto mais descompassado não se dissipava no resto das expressões a partir daquilo. Estava tudo perfeitamente em ordem, ajeitado, embora uns olhos esbugalhados brotassem no entremeio daquelas impressões. E olhavam insistentemente, dando aquele sentimento esquisito de parecer borrado nas calças ou sujo de bosta mesmo na cara, carregando alguma melancia na cabeça. Arrogou-se de si. Levando a velha mais tarde ao mercado, chegou mesmo a ouvir dois ou três cochichos entre ela e as ervilhas. Fingiu que ria da piada quando o locutor silenciou as notícias no rádio do carro. Mudou de canal a tv, desligou, ouviu alguns discos, fumou, abriu a janela da sala e estavam todas no prédio ao lado também abertas, com as luzes apagadas, no entanto. Ligou algumas vezes pra uns números sempre ocupados. Ia sentindo mais calor. Um zumbido fino no canto do quarto quando se deitou. Suava. Estava certo de uma conspiração, de um plano mirabolante. Tateou as paredes da casa, desconfiou do peixe sisudo no aquário, escondeu-se no banheiro. Pensava numa fuga. Catalogou as perspectivas, improvisou um disfarce, e saiu pela fresta na janela que dava para a garagem. Deliberou evitar as ruas e enfiou-se no esgoto. Correu ali embaixo por horas, patinando aquelas poças e desviando-se das oportunidades suspeitas. Saiu perto da rodovia federal, ensaboado, enfurnado de tralhas, correndo desembestadamente, como se pudesse fugir das gargalhadas.

quinta-feira, abril 20, 2006


Claro que parte da obviedade naquilo consistia em saber olhar de modo antecipativo. Era preciso calcular em silêncio, sem denunciar-se com movimentos e gestos imprecisos, manter principalmente os olhos em mediania entre os ângulos oblíquos e agudos, e nem de muito longe nem de muito perto da coisa. Encenar não apenas indiferença, mas mesmo certo descaso acidental, como se balbuciasse planos muito ingênuos. Deixar que vissem dentro, que adivinhassem até certo ponto, jogando iscas e armadilhas em todas as possibilidades, mesmo as mais plausíveis e reais, contanto que se mantivesse pronto para recuar e abrir flancos inéditos. Era um risco ambíguo, e de fato ficava naquela espécie de aporia insaturada, entre uma quantidade irrevogável de mentiras infinitas. Precipitar-se era cortar a equação engolindo suas reticências, constituía o primeiro passo e a dica suficiente, o começo do fim. Importava mesmo mirar apenas dentro, nem pros lados, nem pra frente, nem pra trás, apenas introjetado nos desdobramentos de uma mutilação abstrata do tempo. Montar a armadilha e esperar. Ser principalmente rijo nisso, em não abocanhar a presa por aflição, mas deixá-la construir calmamente seus muros dentro de nossa gaiola. Controlava hipoteticamente tudo e tinha para qualquer incógnita uma função, embora fosse ainda nisso mesmo previsto, mas nesse caso sobrejetivamente adiantado à consciência, quase como Lucky Luke, que na virtude do gatilho atirava mais rápido que a própria sombra. E de tão rápido e tão esperto, prevenindo-se sabiamente, naquilo de antecipar-se a si mesmo e se jogar como alvo da própria mira, estava já de volta para cuidar de suas defesas, atirando na sombra e desviando da bala. Trucava até de frente pro espelho e pedia seis. Dissimulado, inalcançável. Fazia simplesmente antecipar e manter severidade na espera entediante da subjugação total e absoluta. Só que de tão molhado e mau encarado acabou ficando mesmo por ali, no canto do aquário.

domingo, abril 09, 2006


Como que por uma contradição no hipotálamo do mundo, havia um sono agitado e angustiante, um calafrio febril. Impacientava-se adormecido, opressivamente anestesiado, como se sonhasse um pesadelo neurótico. A saliência das coisas, aflitivas, cheias do mesmo medo interno, do mesmo desespero, silenciava os atritos macrobióticos e amplificava a sutileza dos choques microscópicos, batiam tambores cardíacos, tum-tum tum-tum tum-tum. A dor, o ódio, o pânico, transmitiam-se reciprocamente entre aquilo e o mundo, e a liberdade suavizava seus golpes intempestivos de caoticidade em porções esporádicas de equilíbrio matemático. Era não mais que um movimento estupidamente comum do mundo e uma insignificante mudança na posição dos corpos. Um linha sinalizava o limite, e era ela realmente o ponto entre uma coisa e outra coisa. Que houvesse algo de triste, que sentisse vontade de chorar e que não fossem só lágrimas. Que não fosse apenas decepcionante, lastimável e traumático. Que sentisse mesmo tristeza e apertasse os sentimentos num lugar vazio e então, chorasse. Ainda que misturassem emotividades confusas e houvesse principalmente fracasso, era mesmo catastroficamente indiferente, livre e inevitável.

domingo, março 26, 2006


Batia os punhos cerrados naquele rosto, virados como martelos, cravando os ossos, já não mais sentindo-os. Desfigurava-o. Atualizava espasmos efusivos de agressividade, gritava alto, com as mãos, braços, o corpo inteiro, cada músculo contraído. Saía-lhe de dentro um demônio encolerizado, parecendo quebrar os dentes numa mordida histérica. Era um monstro esfomeado estraçalhando sacos de lixo, abrindo as entranhas e arregaçando as costelas. Manifestava ódio idiotizado, contudo. Era mais a inflamação progressiva de um piparote sem valor. A vingança; uma trepada com o pau inchado, só por friccionalidade e dor. Abocanhava os olhos, espatifando, arrancando tufos de cabelos macios. Um tesão nevrálgico, atritoso. Os joelhos pisados, marretados, como galhos secos. Mordia as unhas e arrancava-as inteiras. Havia idiotismo naquela expressão, como quem fosse tomado por um embasbacamento da raiva, como quem perdesse a compostura num orgasmo ensandecido, e já olhasse em torno o cadáver ultrajado, a boca esporrada. Vidrava-se naquilo e parecia ver de outro lugar, ou talvez de lugar nenhum, mas não d`ali. Uma feição meio retangular de mongolóide. Chutou-lhe a testa, apertou-lhe os bagos. Não era por nada, nem por alguma coisa. Muita consubstanciação da coisa nela mesma, muita dramaticidade, mas não por nada nem por outra coisa, só por isso mesmo.

terça-feira, janeiro 31, 2006

Hipodérmico II


Tinha uma coisa muito escura ali dentro, como se fechasse os olhos e visse nada, nem aquilo de várias misturas de cores imprimidas no vazio ou simplesmente o lado de dentro das pálpebras. Olhava fixo para isso com as pupilas enquanto driblava as amarras, encontrando uma saída inédita, um esconderijo indecifrável, uma fenda do universo, bem ali, no canto. Para trás uma quantidade de cheiros, assim expelidos, chupados para o lado de dentro. Não exatamente uma porta nem uma janela, mais uma boca entreaberta banguela e babada. Não aquilo complicado de labirintos e exponencialidades geométricas, sem curvas, linearidades ascendentes-descendentes, só des-invaginação, sucção às avessas, fazendo assim aquele biquinho com os beiços de quando se bebe caldinho de sopa no fundo do prato, e mesmo ainda na colher quando ainda muito quente. Antípoda daquilo de melação suada no ônibus muito cheio, roupa grudando e o mundo comprimindo demais nosso corpo, quase contradição atômica e espacial. Mas ali na verdade um calor confortável de cobertor e cama com lençóis, calor de colo e beijo na boca, sem chamas. Assim engolido por um hálito novo, quente, inabitável entretanto, quase vazio, de dentro do lado de fora. A calmaria do cessar fogo, alvorada sobre os corpos mutilados, sobre as ruínas do vandalismo suicida, escombros, restos de arrogância, de intempestividade. Lanche matinal de abutres e o mesmo vento orvalhado. Nada de suásticas, palavrões, destrutividades injuriosas, apenas o corpo liso ejaculado e adormecido, o sono subtraído de suas obscenidades.