quarta-feira, novembro 30, 2005

Hipodérmico

Amanhece escuro, mais dentro que fora. A boca saliva, mais fenda que circunferência. Os pés quase chão carinhosamente frio. Desses dias escondidos, ontologicamente escassos, mais assobiados ao longe, contigüidades inescrutáveis. Um ventinho só por vez soprando leve, esticando em teso, fibras silenciosamente enrigecidas, as coisas em balões infláveis. O vazio gigante, abismático, buraco negro, cuspindo ao contrário meu rosto da janela. Remelas e cheiro de chuva. Ninguém em lugar nenhum, alguém sempre por ali, invadindo meus orifícios dilatados, costurando-me ao mundo. Apaziguado sincreticamente. O quarto avançando as ruas, avenidas, centros comerciais. Cobertores estirados nos postes. Apalermado, tateando paredes enfronhadas. Tudo bocejando, uoaaahhh... Dentro, algum orvalho com certo bucolismo. Saudade, saudade, saudade.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Da Amizade


___Quisera não compartilhar essa conspiração moral e enxotar de uma vez pela porta dos fundos a idiotice absurda que sustenta nosso pacto de confiança com o mundo. Ausentar um pouco o espetáculo das farsas, revelar nossas putas rabiscadas de batom fedorento, caídas no chão do banheiro, cheias de mentiras, falcatruas, planos para a derrocada absoluta... Olho aberto para a bonança, os bolsos volumosos e as caras redondas dos nossos clientes. Devíamos andar logo com automáticas à mão ao invés de escondê-las dentro da saia. Qualquer pedaço mínimo de carne é alvo da nossa mordida, nossa bocada voraz.... Não há vítimas; só assassinos relativos. O crime, a calúnia, a violência e a traição são os nossos mais constantes e imediatos consetimentos. Não fazemos só beijá-lo e entregá-lo aos cézares, mas inseminá-lo com a nossa AIDS, putrefazê-lo com o nosso câncer e a nossa lepra. E não há cordas no pescoço. Inchamos um pouco, na verdade, caem um tanto das pálpebras, é claro, fechamos mais a cara... De resto, permanecemos essencialmente absortos, firmes, peões de centro, protegidos por rainha, cavalo e bispo. Estamos flagrados com as tripas de nossos amigos lambuzadas na gengiva, os olhos conservam ainda o frescor da humanidade dissecada, temos o hálito de cadáveres. Apontamos o dedo na cara uns dos outros e é só...

sexta-feira, novembro 18, 2005

Escritores demais!!!

A cidade está infestada dessa corja desprezível, intragável, a súcia desenvergonhada destes ilusionistas d’uma figa! Querem engolir tudo desmedidamente, invaginar sua intimidade em balões inchados de trivilalidades literárias, suas pilhas de versinhos infinitamente comuns. Sempre cheios de “idéias”, inventando demais! Palavreiam idiotices, só... querem exaurir nossa capciosidade alfabética; inibem nosso sentimento do mundo... Seus parágrafos estão repletos de buracos e suas intenções covardes misturam-se em romantismos sem sinceridade. Artistas! Veio à minha mesa, interrompeu o assunto, o bom trago na cerveja, cheio de gingas, modismos alternativos...
-- Gosta de poesia?
-- NÃO!

quarta-feira, novembro 16, 2005

CARDIOPATIA

...mas quando Lili foi embora eu já não possuia aquela linha que policiava minhas conexões, meus remendos... era uma enorme mistura, engalfinhado e amordaçado nas tramas amarrotadas do apartamento. Um chicletes gigante havia me grudado naquela nojeira, estava ajuntando meus fracassos aos aderentes daquela gosma... Muita gente vindo interromper o mastigar... A solidão assaltava-me de dentro pra fora, como se fosse embora de mim mesmo, para um lugar tão só... sem saudades, sem mágoas, sem ninguém, sem-migo-mesmo... Enfiava a cabeça entupida de tralhas num balde de álcool, aliviava-me da matéria impregnante, como os cadáveres em velórios floridos... Todo aquele cheiro forte, aquela seriedade, os olhos ardendo noite em claro, a boca machucada de café e cigarro, o morto no meio... duas pelotas de algodão socadas, uma em cada narina... formol... Se sentisse, sentisse certo gelado anestesiante. Não exatamente triste, nem melancólico... não uma fotografia de pôr-do-sol com chuva, nem precisamente Chopin ou Tchaikovsky com vodca, tão assim na pele... Algo mais seco, mais agulha chiando depois do disco. O amor era então uma coisa entorpecente que me lambuzava. Ela estava escondida nos mais brutos vestígios daquela alucinação...