sábado, abril 22, 2006


(Paranoia, 1995, Öil auf Leinwand. Walter Strolb)

Começou percebendo excentricidade no toque do telefone, não apenas triiim como de uso, mas como que engasgando uma consoante nova, meio escondida depois do r. Depois ia ficando meio abafado o ar da casa, trliiim... trliiim... Ignorou o soslaio da mocinha no caixa da farmácia, embora intrigado um tanto mais. Nada extremamente insólito. Algo entretanto mais descompassado não se dissipava no resto das expressões a partir daquilo. Estava tudo perfeitamente em ordem, ajeitado, embora uns olhos esbugalhados brotassem no entremeio daquelas impressões. E olhavam insistentemente, dando aquele sentimento esquisito de parecer borrado nas calças ou sujo de bosta mesmo na cara, carregando alguma melancia na cabeça. Arrogou-se de si. Levando a velha mais tarde ao mercado, chegou mesmo a ouvir dois ou três cochichos entre ela e as ervilhas. Fingiu que ria da piada quando o locutor silenciou as notícias no rádio do carro. Mudou de canal a tv, desligou, ouviu alguns discos, fumou, abriu a janela da sala e estavam todas no prédio ao lado também abertas, com as luzes apagadas, no entanto. Ligou algumas vezes pra uns números sempre ocupados. Ia sentindo mais calor. Um zumbido fino no canto do quarto quando se deitou. Suava. Estava certo de uma conspiração, de um plano mirabolante. Tateou as paredes da casa, desconfiou do peixe sisudo no aquário, escondeu-se no banheiro. Pensava numa fuga. Catalogou as perspectivas, improvisou um disfarce, e saiu pela fresta na janela que dava para a garagem. Deliberou evitar as ruas e enfiou-se no esgoto. Correu ali embaixo por horas, patinando aquelas poças e desviando-se das oportunidades suspeitas. Saiu perto da rodovia federal, ensaboado, enfurnado de tralhas, correndo desembestadamente, como se pudesse fugir das gargalhadas.

quinta-feira, abril 20, 2006


Claro que parte da obviedade naquilo consistia em saber olhar de modo antecipativo. Era preciso calcular em silêncio, sem denunciar-se com movimentos e gestos imprecisos, manter principalmente os olhos em mediania entre os ângulos oblíquos e agudos, e nem de muito longe nem de muito perto da coisa. Encenar não apenas indiferença, mas mesmo certo descaso acidental, como se balbuciasse planos muito ingênuos. Deixar que vissem dentro, que adivinhassem até certo ponto, jogando iscas e armadilhas em todas as possibilidades, mesmo as mais plausíveis e reais, contanto que se mantivesse pronto para recuar e abrir flancos inéditos. Era um risco ambíguo, e de fato ficava naquela espécie de aporia insaturada, entre uma quantidade irrevogável de mentiras infinitas. Precipitar-se era cortar a equação engolindo suas reticências, constituía o primeiro passo e a dica suficiente, o começo do fim. Importava mesmo mirar apenas dentro, nem pros lados, nem pra frente, nem pra trás, apenas introjetado nos desdobramentos de uma mutilação abstrata do tempo. Montar a armadilha e esperar. Ser principalmente rijo nisso, em não abocanhar a presa por aflição, mas deixá-la construir calmamente seus muros dentro de nossa gaiola. Controlava hipoteticamente tudo e tinha para qualquer incógnita uma função, embora fosse ainda nisso mesmo previsto, mas nesse caso sobrejetivamente adiantado à consciência, quase como Lucky Luke, que na virtude do gatilho atirava mais rápido que a própria sombra. E de tão rápido e tão esperto, prevenindo-se sabiamente, naquilo de antecipar-se a si mesmo e se jogar como alvo da própria mira, estava já de volta para cuidar de suas defesas, atirando na sombra e desviando da bala. Trucava até de frente pro espelho e pedia seis. Dissimulado, inalcançável. Fazia simplesmente antecipar e manter severidade na espera entediante da subjugação total e absoluta. Só que de tão molhado e mau encarado acabou ficando mesmo por ali, no canto do aquário.

domingo, abril 09, 2006


Como que por uma contradição no hipotálamo do mundo, havia um sono agitado e angustiante, um calafrio febril. Impacientava-se adormecido, opressivamente anestesiado, como se sonhasse um pesadelo neurótico. A saliência das coisas, aflitivas, cheias do mesmo medo interno, do mesmo desespero, silenciava os atritos macrobióticos e amplificava a sutileza dos choques microscópicos, batiam tambores cardíacos, tum-tum tum-tum tum-tum. A dor, o ódio, o pânico, transmitiam-se reciprocamente entre aquilo e o mundo, e a liberdade suavizava seus golpes intempestivos de caoticidade em porções esporádicas de equilíbrio matemático. Era não mais que um movimento estupidamente comum do mundo e uma insignificante mudança na posição dos corpos. Um linha sinalizava o limite, e era ela realmente o ponto entre uma coisa e outra coisa. Que houvesse algo de triste, que sentisse vontade de chorar e que não fossem só lágrimas. Que não fosse apenas decepcionante, lastimável e traumático. Que sentisse mesmo tristeza e apertasse os sentimentos num lugar vazio e então, chorasse. Ainda que misturassem emotividades confusas e houvesse principalmente fracasso, era mesmo catastroficamente indiferente, livre e inevitável.