quinta-feira, dezembro 29, 2005

CARDIOPATIA (outro pedaço)

...A vida era uma bosta porque não tirava nada do lugar. Como se um torpor doentio se apossasse das teias de nossa existência e nos consumisse em paralisia dormente. Tudo foi aos poucos se adaptando aos cantos, arrastando-se desorganisadamente para uma imobilidade rançosa. Os projetos fundiram-se numa empoeirada pilha de impressos, um bloco de gordura e tocos de cigarro acolhiam-se à sujeira. Sempre a sensação de um trabalho pelas metades, impregnando a vida. Tudo encostado, deixado pra lá. Uns três livros marcados no meio. A preguiça, o descaso, o desamparo em que vivíamos era sintomático da nossa loucura. Isso era meu, entretanto. As pessoas contaminavam-se nessa armadilha, por se aproximarem. Levei isso comigo para sempre até o inferno, dentro das gavetas, nos trabalhos, dívidas, drogas, vícios. Baguncei tudo, mandei tudo à merda. Meu pai costumava me dizer, antes de bater as botas, que desde feto eu já era um cagão, maricas. Chorava alto na barriga da velha o tempo todo... “Um berreiro de merda! Vai ser veado! E ponho logo na rua... Caralho!” Apontava para mamãe que respondia com educada e ridícula passividade. Morreu antes de engolir os desaforos. Encheu-se de ervas inúteis para curar a septicemia, manias da roça... Ficou com as bochechas cheias, como se chupasse dois ovos de avestruz. A infecção na gengiva apodreceu sua boca. Enterraram o corpo e eu fiquei com a farda de me parecer com um homem muito bom, honesto, puro, que morreu tão cedo, coitado... Caipira demais! Não fui ao enterro. Brincar era mais importante. Mas virei um bosta de verdade, como avisou. Sua morte egoísta, de alguma maneira, me enfilerou nessa auto-complacência ridícula dos melancólicos inválidos e reclamões...

Nenhum comentário: